terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Carnes e peixes da gastronomia madeirense

A ilha da Madeira foi sendo conhecida pela sua gastronomia rica e variada que inclui, para além de outros factores importantes, a presença da carne e do peixe, sendo este último, fresco ou salgado.

Carnes

A ementa de carnes era variada, sendo servida de galinha, vaca, peru, frangos, leitões, coelhos, cabritos, não faltando a carne de porco e os presuntos, sendo estes então, animais provenientes da criação doméstica. No âmbito deste trabalho apenas alguns são destacados, nomeadamente a carne de galinha, carne de vaca e carne de porco (Cardoso, 1994: 86).

Carne de galinha

Começando pela carne de galinha, esta assume um lugar de destaque em dias festivos, isto é, no Advento, Quaresma, Natal, Páscoa e dia de Santa Clara, servido com pão, por norma demolhado1.
No Convento da Encarnação, a mesa dos séculos XVII e XVIII era farta. Diariamente as freiras reuniam-se para duas refeições: o jantar e a ceia, onde a carne era muito abundante, pois a falta de peixe no mercado local não o facilitava[1].
Antigamente, a carne de galinha servia também para os caldos e as habituais canjas. Por vezes, passava o capoeiro nas casas apregoando: "Há galinhas que venda? O capoeiro discutia o preço das galinhas e depois recolhia-as, pendurando-as pelos pés no cajado, para ir a pé vendê-las à cidade. "Era conforme, uma galinha podia ser oito ou dez patacas..." (Ornelas cit. por Mata, 1989). Eram quase todas para vender mas quem estivesse doente tinha direito a um caldinho de galinha. Tratava-se de um petisco somente para dias especiais, como a primeira oitava da “Festa”, quando todos os familiares eram convidados para ver a “lapinha” (Mata, 1989).
Hoje, ainda existem pessoas que mantêm a tradição de criar galinhas em casa e têm galinheiros tradicionais (Figura 1) (Mata, 1989).


É de salientar o facto de ser comum o uso do termo “frango” para caracterizar a galinha (ou galo juvenil), e este pode ser servido simples, frito, grelhado e até como espetada de frango.






Figurara 1- Galinheiro no sítio do Vale Paraíso - Camacha

Carne de vaca

Os amantes de carne encontram na ilha uma grande variedade de pratos de carne de vaca (vitela ou boi), dos quais se destacam a tradicional espetada, feita em pau de louro, onde a carne é cortada em pequenos pedaços (pequenos cubos), temperada com sal, louro e alho, e grelhada sob o carvão bem quente. Esta está sempre presente nas festas tradicionais e arraiais madeirenses[1]. No entanto, inicialmente, a espetada era popular entre os romeiros e excursionistas, e só estes consumiam a deliciosa espetada, sendo apenas mais tarde, consumida por toda a população (Cardoso: 86).
Felizmente, o nível de vida subiu no final dos anos sessenta, tanto que hoje em dia «não há família em qualquer aldeia da ilha que, uma vez por semana, não compre carne de vaca para a refeição do dia santo ou do domingo» (Veríssimo, 2001; cit. por Santos: 132).
Na cultura do turismo em que se tornou a Madeira, a partir da segunda metade do século XX, a tradicional espetada é prato indispensável da gastronomia madeirense e especialidade emblemática, digna a cartaz turístico, dos restaurantes típicos da ilha (Santos: 132).
Ainda que a espetada seja um prato regional, a sua comercialização fora das festividades religiosas, ou seja nos restaurantes, nasceu na freguesia do Estreito. Com efeito, na década de cinquenta, Francisco da Silva Freitas, proprietário de um pequeno bar, mais tarde transformado no restaurante "As Vides", quebrou essa tradição secular ao introduzir, no seu bar a espetada como especialidade gastronómica, acabando outros restaurantes por o imitar e rapidamente se estender a toda a ilha. Por tal facto, apesar de grandemente divulgada por toda a Madeira, o Estreito de Câmara de Lobos é considerado o berço da espetada da carne de vaca e continua a ser o local escolhido por quem quer apreciar esta especialidade gastronómica. É por isso que muitos populares dizem (especialmente dessa zona), que ir ao Estreito ou à Madeira e não comer uma espetada, é como ir a Roma e não ver o Papa[2].
Deste modo, é bastante comum encontrarem-se, actualmente, restaurantes dotados de mesas com estruturas em ferro, colocadas no centro, onde se penduram os espetos, depois de bem temperados e grelhados os bocados de carne. Os bocados de carne são, normalmente, mal passados e ainda com sangue a cair, pois «é mais saboroso e sabe melhor!», afirmam muitos populares[3].
Da carne de vaca, também era usual, num receituário refinado, preparar a língua afiambrada, as miudezas, fígado, bofe e a mão de vaca como geleia. A geleia de mão de vaca era usada como fortificante, com sabor doce ou salgado (Cardoso: 86)











Espetada regional


Carne de porco

Dentro dos pratos mais conhecidos, merece especial importância, a famosa carne de vinho e alhos ou vinha-d’alhos, no domínio das carnes da gastronomia madeirense.
Este prato típico da época natalícia, surgiu como substituição da continental posta de bacalhau, em que carne de porco cortada aos cubos vai a marinar em vinho e alho, surgindo daí, o seu nome.
Este prato, é então, confeccionado especialmente na época de Natal, sendo normalmente a oito de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, ou ainda, no dia dezoito de Dezembro, (dia de Nossa Senhora do Ó ou do Parto), que se dava e ainda se dá, a matança do porco, resultando daí um convívio, entre familiares, vizinhos e amigos[1].
Deste modo, depois de desfeito, conservava-se «na salgadeira do vinhático para se obter carne de porco em salmoira» (Veríssimo, 2001; cit. por Santos: 68). Era também costume, «confeccionar linguiças em casa de famílias gradas da ilha que, segundo consta, as preparavam em fogão e lenha» (Santos: 69).
Salmoira:


Desde muito cedo que as partes do porco são tradicionalmente aproveitadas, tais como, a sua carne, sangue e miudezas e fazem-se ainda pratos típicos desta época e “dentinhos”, petiscos normalmente confeccionados com as patas e as orelhas de porco, assim como outros pedaços da carne salgada (Ferreira, 1999; cit. por Santos: 69).
Outros pratos são preparados a partir das partes do porco, e são estes, o sangue guisado, o famoso sarapatel, nomeadamente feito com sangue, banha e fígado cozido de porco, que segundo Santos, está cada vez mais em desuso (Tabela 1). A espetada de coração e o fígado, o bofe, a fressura, os bifes de fígado, a linguiça e o debulho, ou seja, os intestinos, que é escaldado para ser comido em sopas de agrião ou moganga, também são muito utilizados (Ferreira, 1956; cit. por Santos: 69).
O dia da matança do porco, esperado com ansiedade por todos, começa de madrugada, durante a qual um grupo de quatro a cinco homens, alguns deles usando o típico barrete de orelhas (barrete rústico de lã) se dirigem para o chiqueiro, atam uma corda à volta do pescoço do porco e, de seguida, encaminham-no para fora onde, depois de segurá-lo firmemente contra o chão, o matador acerta-o com um golpe certeiro de faca. O sangue que brota do pescoço é, então, rapidamente recolhido pelas mulheres que, com um alguidar, ou bacia na mão, é aproveitado para confeccionar o sarapatel, como já foi referido, após o que se esquarteja o corpo do animal. No dia seguinte, preparam-se as febras, provenientes do lombo, que servirão para preparar a tradicional carne de vindo e alhos, servida no dia de Natal. É de salientar o facto que, das costelas são retiradas as costeletas, muito saborosas, «e com os pernis do porco prepara-se a “carne assada no forno”», para o conhecido cozido à madeirense5 (Nascimento, 1949; cit. por Santos: 69).
O que não é consumido na época é conservado na salgadeira e consumido ao longo do ano. A cabeça também é utilizada, bem salgadinha, para ser cozida posteriormente, «com olhos de couve e semilha nova» (Ferreira, 1999; cit. por Santos: 69).
Para as pessoas mais estimadas da paróquia, amigos e compadres da família, são reservadas outras partes da carne do porco, sendo estas, as bichanas ou bichaninhas. O dia da matança do porco, esperado durante todo o ano é, desde tempos imemoráveis, o dia da festa por excelência, um dia com muito vinho e comida, danças, cantares e despiques5.
Há que fazer referência, e apesar de não estarem integradas nas classes anteriores, a carne de carneiro, que era comum na mesa conventual e senhorial, o coelho bravo, usado em vinho e alhos e também em guisados, bem como o cabrito que se destaca na Páscoa, sendo popular entre as famílias mais numerosas (Cardoso: 13, 86).

Peixes

A ilha da Madeira é privilegiada pelo mar que a rodeia e, consequentemente, pela sua riqueza piscícola. A condição da ilha fez com que o peixe fosse, desde sempre, um alimento de extrema importância para os madeirenses, sendo consumido cozido, frito, salgado ou seco[1]. Deste modo, o peixe foi, tradicionalmente, a base da alimentação das freguesias litorais da Madeira e do Porto Santo, estendendo-se depois por toda a ilha (Cardoso: 75).
Destacando o consumo de peixes na ilha, as classes menos favorecidas proviam-se exclusivamente de “peixes baratos”, tais como: «o gaiado e a gata, parentes pobres do bacalhau», bem como a «cavala, o chicharro e o atum» sendo estes mais comuns no litoral sul (Santos: 131). A “gata”, segundo Abel Marques Caldeira, é uma espécie de peixe que substitui o bacalhau, de maior consumo na freguesia de Câmara de Lobos, daí sendo denominado também desta forma (Santos: 131). Acerca deste último, afirma-se que em inícios do século XX, dificilmente se provaria à mesa das famílias do Norte a “gata”, pois não havia menção desta espécie na faina dos pescadores de Ponta Delgada (Santos: 131).
É de salientar que, no século XX, as salemas, outra espécie existente, eram frequentes nas mesas dos habitantes do litoral Norte. Na cidade, o atum e o peixe-espada preto eram bastante utilizados em restaurantes populares (Santos: 131).
O peixe-espada, que se vendia nos anos trinta, na Praça de peixe no Funchal, era «mais barato, mais abundante e de fácil transporte». Era, deste modo, o peixe azul que predominava na dieta dos insulares anónimos (Santos: 131). Actualmente, o peixe-espada preto representa o recurso de maior importância explorado no Arquipélago da Madeira, onde as principais zonas de pesca se localizam na costa sul da ilha. Por conseguinte, o peixe-espada é muito apreciado pela sua textura e, geralmente usado na cozinha madeirense em filetes de espada ou espada em escabeche[2].
O cherne, o pargo, o bodião e a garoupa são os peixes mais cobiçados pela gente mais abastada e mais rica. O bacalhau, por sua vez, conhecido como prato de pobres, foi sendo habitual na dieta dos portugueses como petisco que dava alento aos trabalhadores nas lides do campo, antes de se tornar no prato que é hoje explorado e conceituado nos melhores restaurantes, pois é outro dos peixes que mais variedades de preparação tem (Santos: 131).



Ao peixe, principalmente nas freguesias do litoral, estão associados a secagem, a salga do peixe, a utilização da conservação do peixe com o vinagre (escabeche), e actualmente, os processos de conservação normais (Cardoso: 75).
Em meados da década de sessenta surgiram também a castanheta, o peixe-verde, a truta, o carneiro e o sargo (Gouveia, 2005; cit. por Santos: 59).
Na Ponta Delgada, era também usual a pesca da dourada, do salmonete, e do goraz, onde o porto formigava de gente que comprava os deliciosos peixes, também denominados de peixe fino, pois antigamente só as famílias mais ricas consumiam este peixe. No entanto, neste local já não se avistava a sardinha e só se avistava gaiado «porque aconteceu ao atum o que aconteceu com a sardinha» (Santos: 131).
É de evidenciar o facto de ser, tradicionalmente, na Quaresma, a época em que o peixe é um dos produtos alimentares mais procurados pelo povo, visto ser nesta época que a população se abstêm de carnes (Santos: 63).
Com o passar do tempo, outros peixes foram surgindo, nomeadamente a abrôtea, o arenque, a bica, a bicuda, o besugo, o badejo, o alfosim da costa, o enchareu, espadarte ou peixe-agulha, o cravo, o peixe-porco, a moreia, a tainha, entre outros (Cardoso: 75). Estes, embora se apanhe, não são tão requisitados pelo povo madeirense, como os já referidos no texto.
As delícias do nosso mar também são de realçar, pois o marisco é característica fundamental nas zonas piscatórias, que em medida, se estende por toda a ilha, até mesmo pelos restaurantes. Antigamente, nos calhaus de pedras musguentas, as mulheres andavam às lapas, e os homens de fisgas tridentes espreitavam os polvos nos buracos, onde as holotúrias pareciam hibernar. Muita gente andava ao marisco, e outros apanhavam polvos e moreias (Gouveia, 2005; cit. por Santos: 63).
Para além destes, existem outros: os caramujos que não são muito apetitosos à vista, mas deliciosos, as lulas (da família do polvo), o camarão, os caranguejos e até há quem seja adepto dos búzios, apesar de menos usual, cá na região.







[1] Comida (s.d). Consultado a 2007.11.15 em: http://www.madeira-web.com/PagesP/food-p.html
[2] Madeira (s.d.). Consultado a 2007.11.15 em: http://ipimar-iniap.ipimar.pt/aphacarbo/obestudo.htm
[1] O Natal na Madeira (s.d.). Consultado a 2007.11.12 em: http://www.ama-lingua.com/fim_ano.htm
[1] Comida (s.d). Consultado a 2007.11.12 em: http://www.madeira-web.com/PagesP/food-p.html
[2] Freguesia do Estreito de Câmara de Lobos (s.d). Consultado a 2007.11.12 em: http://www.geocities.com/TheTropics/Paradise/4273/dicionario/freguesia_estreito_camara_lobos.html
[3] Comida (s.d). Consultado a 2007.11.12 em: http://www.madeira-web.com/PagesP/food-p.html
[1] VIEIRA, Alberto (s.d.). Cozinha Madeirense. Consultado a 2007.10.28 em: www.cozinhamadeirense.com

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